No Chill (sem resfriamento)

A parte mais chata e perigosa do processo cervejeiro é de longe o resfriamento, pois baixamos a temperatura do mosto de algo próximo aos 100°C ao desligar a fervura, e precisamos transferir para o fermentador na temperatura de inoculação da levedura, que normalmente será abaixo de 30°C (com poucas exceções entre as cepas), o que pode levar vários e preciosos minutos do dia, além do gasto de água que pesa na conta e mais ainda na consciência. Temos ainda a questão da segurança sanitária deste processo, pois a contaminação pode acontecer na panela quando utilizar um chiller de imersão e a temperatura já tiver caído significativamente, ou dentro do próprio chiller de placa se este não tiver sido devidamente limpo e sanitizado após a última produção. Vamos considerar aqui a utilização de gelo na bacia de água, mas essa alternativa também pode ser custosa se o cervejeiro não tiver em casa um freezer dedicado a fazer gelo, pois uma produção de 30 litros gasta bastante, e a saca de 5kg aqui no ABC Paulista por exemplo está entre R$10 e R$15 dependendo do bairro.

Por essas razões, algum brilhante homebrewer inventou um método que na verdade é quase a ausência de método, baseado em não resfriar por nenhuma das opções anteriores logo após o final da fervura, mas deixar que o tempo e o ambiente se encarreguem de baixar a temperatura, nascia o método conhecido como No Chill.

Há diferentes formas de se fazer, e diferentes equipamentos que podem ser utilizados, vamos ver as opções viáveis.

Recipientes para No Chill

Embora sejam raros no Brasil, alguém pode ter adquirido um autêntico carboy americano ou um demijohn, e sentir-se tentado a utilizá-lo para essa finalidade. Não faça isso, por ser feito de vidro comum e não borosilicato, seu belo fermentador será destruído no primeiro uso. Tanques em PET também estão fora de questão pois são seguros apenas abaixo dos 50°C. Se quiser utilizar plástico, terá de pesquisar um material que além de suportar a temperatura próxima dos 100°C sem ser deformado, ainda não libere nenhum componente químico no mosto, há materiais para essa finalidade, mas nem todos estão disponíveis no mercado de home brewing. A melhor opção é de longe o velho e bom aço inox.

Métodos

O mais simples a fazer seria simplesmente tampar a panela e esperar algumas horas até esfriar naturalmente, e depois transferir para o fermentador. Quem não se sentir seguro com isso precisará obter algum dos recipientes comentados acima que atendam às questões de segurança química e térmica, e transferir o mosto quente para o recipiente e fechá-lo de forma a manter a segurança após o resfriamento. Se este recipiente não puder servir de fermentador, haverá ainda uma nova etapa de transferência para o verdadeiro fermentador, já com o mosto resfriado, e aí portanto deve-se ter todo o cuidado possível para evitar a contaminação.

Vantagens

Qualitativamente nenhuma, mas há algumas economias a se considerar, por razões óbvias, água e equipamentos de resfriamento, mas quando se fala de tempo, é preciso separar as coisas. Uma coisa é o tempo de trabalho que será poupado por não ter que acompanhar o resfriamento normal e depois ainda limpar o equipamento (chiller de placa dá bastante trabalho), outra coisa é o tempo de processo, pois deixará de inocular a levedura no mesmo dia para fazê-lo no dia seguinte, ou seja, perde-se um dia para ter a cerveja pronta, muito embora isso possa a ser reduzido a algumas horas se estiver brassando em algum local muito frio e o ar livre e talvez a neve se encarreguem de ganhar algumas horas.

Desvantagens

Há algumas, vamos falar em ordem crescente de importância e em tópicos:

  • Translucidez: o resfriamento imediato, especialmente se for rápido, utilizando um chiller de placa ou contrafluxo, e se possível associado com água gelada (glicol??) ajuda a flocular e precipitar as proteínas presentes no mosto. Provavelmente a maioria dos cervejeiros irá considerar este como um problema menor e eu pessoalmente concordo, mas é um ponto a considerar;
  • DMS: este conhecido e indesejado off flavour é uma substância (di-metil sulfeto) formado a partir de um precursor (SMM) que está presente nos maltes. A conversão acontece durante a fervura, mas ele é eliminado nesta mesma etapa por evaporação, e para de ser gerado com o resfriamento. Ao fechar o recipiente ou tampar a panela para o No Chill, o DMS continuará a ser convertido, porém não será eliminado e ficará no mosto e ao final na cerveja, trazendo aquele gosto de milho cozido que só é bom em comida;
  • Amargor: o não resfriamento rápido do mosto implica na continuidade da isomerização do alfa-ácido do lúpulo e consequentemente no aumento dos IBUs inicialmente calculados para aquela receita e mais amargor que o desejado;
  • Aroma: ao contrário do amargor, o aroma típico do lúpulo se perderá por completo, pois os óleos essenciais irão se volatilizar com a alta temperatura;

Botulismo

Eu teria colocado como tópico acima, mas essa não é exatamente uma desvantagem, mas sim um seríssimo risco de saúde, e por isso merece um parágrafo a parte.

O botulismo é um envenenamento raro causado por toxinas produzidas pela bactéria Clostridium botulinum. A hipótese disso acontecer seria o azar ao extremo de haver esporos da bactéria no mosto, sendo que esses esporos vivem normalmente no solo e portanto não deveriam nunca chegar a panela. Por outro lado eles são resistentes à temperatura de fervura, que protege o mosto até ali da grande maioria das bactérias que nos cercam. Em processos normais não deveria haver grandes problemas com sua presença pois o “bandido” cresce em ambiente anaeróbico e em pH acima de 4,6. O mosto até possui pH acima deste número, mas possui oxigênio dissolvido devido à aeração mecânica ou oxigenação com inserção do gás, portanto inibe o crescimento da bactéria, e quando o nível de oxigênio cai após ser consumido pela levedura, a fermentação começa e então é o pH que cai, não dando chances ao c. botulinum.

É aí que entra o perigo do No Chill, pois após a fervura o mosto perde oxigênio, mas o pH ainda está relativamente alto (+/-5), criando o ambiente necessário para o crescimento e liberação da bactéria a partir de seus esporos, e isso poderá causar o botulismo. A melhor opção para eliminá-lo seria ferver o mosto sob pressão para matar os esporos, 116°C por 20 min. com 10 psi de pressão… bastante inviável para o cervejeiro caseiro e fora de cogitação para uma cervejaria!!

Conclusão deste tópico, botulismo é raro, mas existe, e por isso precisa ser conhecido. Embora as chances de acontecer justamente na sagrada panelinha do cervejeiro sejam muito escassas, é um risco a ser considerado, uma vez que trata-se de uma doença que se não for tratada rápida e corretamente, é fatal.

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